terça-feira, 16 de setembro de 2014

O regresso

Voltaste. Com alegações de longevidade extrema. A saia um pouco acima da decência. Os olhos semicerrados e esculpidos por um certo tipo de cinismo. Com novos implantes cibernéticos. Com o último sorriso de Da Vinci. Estavas feliz, visivelmente feliz. A tua alma foi capa da Playboy de Setembro. Mataste a memória crónica do teu ex-marido (ternura e injúrias incluídas). Estavas no auge da tua promessa cumprida, sentada, com as pernas cruzadas, no território impassível do meu sofá, com a luz de presença em cima. O tempo decorria. As palavras fluíam. Agora, em Super Slow Motion, era possível até contabilizar as gotículas de saliva, de cada vez que os teus lábios deixavam escapar os sons mais adversos. Cruzavas e descruzavas os braços e as pernas. Mexias no inferno dos cabelos. Olhavas regularmente para o dia seguinte, para o fundo da objectiva, mas sem nunca te importares muito se estavas ou não a ser importunada pela inconfidência, vigiada pela claridade do assassino. O teu prazer era pura subtracção de caprichos, súbita drenagem de acontecimentos. A certa altura, já não havia ninguém. Tu já não falavas para mim. Falavas para ninguém, para ti mesma, para um silêncio subalterno nos confins da armadilha. Foi então que eu saí da sala e voltei logo a seguir com todas as partículas de deus dentro de um pequeno comprimido.

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